31.1.09
© Saul Leiter (fotografia)


Ardósia lamentava a vida. E a vida ignorava-a, naquele jeito de quem não se preocupa por tudo ser e nada querer saber. Ardósia lia duas páginas, pousava o livro, e perdia-se em evocações. Ainda desconcentrada, forçava o regresso à leitura, para se render em meio tempo. O pensamento, vagabundo, pairava algures, nenhures em Ardósia. A concentração resvalava sempre para o ardor de falar com Mr. Bluemoon…

Ardósia desistiu do livro, pousou-o sob a dobra do jornal, e arriscou, antes, a escrita. Esgrimia ideias no ar mas ao pousar a caneta nada. E se lhe escrevesse uma carta? A razão gritava não mas o desejo resmungava talvez. Dedicar-lhe um poema? Escutara epopeias desesperadas de quem expôs sentimentos a estranhos mas nunca tivera boas-novas, de finais felizes. Convidá-lo a sentar, para um café?... A vida tinha sido curta demais para ser farta e não queria desperdiçar oportunidades, se bem que também se prospera com perdidas, apregoam anciães fora de tempo… Mas, fosse por onde desse, o dito senhor estava em mente e não presente.

Renunciou à escrita antes de a começar. A melancolia não dava para mais, sobrava para nada. Queria canalizar o sentimento no papel mas apenas se projectava na folha incólume. Ardósia, ao contrário do que desejava mostrar, era tábua rasa…

Ali continuou, reclinada e inerte, sem apoio de dobras de braços que a pequenez da mesa a isso reprimia. Contemplar o rodeio também era sol de pouca dura. Se alguém a si encaminhava, Ardósia pestanejava em câmara lenta, girava e encolhia a cabeça, entartarugando-se. Não passava de um grande muro de lamentos.
 
post(o) por MF às 16:55